No dia 6 de janeiro, tinha alguns afazeres. Tive de sair de casa pelas 18h30, quando já estava escuro e muito, muito frio. Por isso, vesti o meu casaco mais quente, pus um cachecol e lá fui eu. Quando entrei no carro, os vidros estavam embaciados e, por isso, tive de ligar o ar condicionado. Ainda demoraram uns 5 minutos a desembaçar, por isso cheguei um bocadinho atrasada ao sítio onde tinha de ir. Mas pronto, fiz o que tinha a fazer e voltei para casa.
Eram mais ou menos 20h30 quando abri a porta da frente e me deparei com os meus pais a pé no meio da cozinha, de caras voltadas para cima, a olhar para a televisão. A minha mãe tapava a boca com uma mão. Fiquei confusa, e segui a direção dos olhares. Na televisão, vi o caos.
Uma multidão de pessoas de chapéu vermelho invadia o Capitólio, o centro legislativo dos Estados Unidos da América, onde estava reunido o Congresso a verificar o resultado das eleições. Os apoiantes de Trump não ficaram contentes e ainda não aceitaram o inevitável: a presidência de Trump está nos seus últimos dias e, dentro de pouco tempo, o republicano terá de ceder o seu lugar a Joe Biden. O que não ajuda a este descontentamento é a posição de Trump: que não condena estes comportamentos e, através de declarações mais diretas ou indiretas, os incentiva.
Enquanto via estas imagens, só pensava: mas o que é isto? Não conseguia acreditar que estava mesmo a acontecer, eram cenas dignas de um filme. Mas a realidade é que não eram, não foram e não vão ser nunca. É a América real. Passado o choque inicial, a confusão permaneceu. O que estava a assistir era um ataque ao Governo, um motim, violência gratuita. E a ação policial não combinava com esta descrição.
Neste momento, só consigo comparar a abordagem do ataque com a banalidade da minha rotina ao sair de casa. Tal como eu, as forças de segurança não fizeram nada demais; quase que deixaram a situação controlar-se sozinha, sem grande intervenção, tal qual uma rapariga apressada à espera que o ar condicionado desembace os vidros do carro.
Esta ação contrasta com a posição tomada pelas forças policiais no verão, aquando dos protestos Black Lives Matter, contra o racismo. Segundo o projeto Armed Conflict Location & Event Data, mais de 93% das manifestações BLM foram pacíficas. Os participantes só estavam a pedir para respirar, para as suas vozes serem ouvidas. No entanto, estas foram abordadas como ataques terroristas: recurso à força, utilização de bastões, balas de borracha (que não são tão suaves como o nome transparece). Já no dia 6, houve quem chegasse ao gabinete da presidente da Câmara dos Representantes sem grande dificuldade e ainda tivesse tempo de tirar fotografias na cadeira de Nancy Pelosi.
Penso que as palavras exatas em jeito de ameaça de Trump, em maio, foram: “quando as pilhagens começam, os tiroteios começam”. Mas, desta vez, já foi mais brando: “adoramo-vos, vocês são muito especiais”. Claro.
As duas abordagens, completamente diferentes e opostas, mostram a hipocrisia da maior potência mundial. O racismo institucionalizado, se já não o era, está cada vez mais evidente. Dá que pensar: se a cor da pele das pessoas que participaram no ataque ao Capitólio fosse mais escura, a reação seria tão tranquila? Será que os agentes de segurança dariam sequer a oportunidade de entrada? Será que tirariam um minutinho para tirar fotografias com os invasores?
Dito isto, não estou de forma alguma a incentivar à violência, nem a defender que o tratamento bruto deve ser o mesmo para todos. Só gostava de compreender por quanto tempo mais um protesto calmo é tratado como um ataque direto ao Governo, e vice-versa. Por quanto tempo mais a cor da pele irá definir se alguém é um terrorista ou um simples manifestante. Por quanto tempo mais esse aspeto irá definir se esperamos que o ar condicionado desembace o vidro ou se pegamos num pano e o limpamos instantaneamente.
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